Dr. Sérgio de Paula Ramos, Psiquiatra
ex-Custódio não alcoólico - Autor do livro: Alcoolismo Hoje
Como psiquiatra de centros de tratamento de Farmacodependência - no decorrer de catorze anos - acompanhei cerca de mil e quinhentos inventários. As manifestações que observamos nos dias em que as pessoas estão escrevendo os inventários são perceptÃveis a todos que trabalham ou estão se tratando no Centro de Tratamento: medo, vergonha, sensação de humilhação, pânico, von-tade de fugir do tratamento, sentimentos de fraternidade e humildade, alegria, alÃvio, segurança pelas autodescobertas e aceitação de si mesmo.
Escrever detalhadamente sobre si mesmo exige concentração, esforço de memória e um certo grau de organização dos pensamentos que tornam esse escrever um procedimento dotado de elevado conteúdo terapêutico. Desta forma, o indivÃduo é submetido a um profundo contato consigo mesmo, com a sua história e com a sua realidade; ali ele se vê de forma crÃtica e a reavaliação; traz-lhe percepções claras de cada momento e de cada fato bom ou ruim de sua vida, de suas qualidades, seus defeitos e seus limites.
É como deixar para trás o peso que carregava; é lavar a alma de uma só vez.
Em Alcoólicos Anônimos, o tratamento é baseado no programa de Doze Passos. Esse programa não permite uma leitura estática e é interpretado diferentemente a cada vez que é lido.
Tal dinâmica impede que seja entendido ou iniciado e terminado e possibilita a sua prática indefinidamente.
Quanto melhor for o autoconhecimento, maior será a capacidade de praticar o programa, que tem a sua eficácia reconhecida por centenas de milhares de alcoólicos em todo o mundo.
A responsabilidade do alcoólico quanto a sua sobriedade está ligada ao seguimento do programa.
O psicólogo e teólogo Carlos Barcelos explica que a chave da recuperação é a graça do Poder Superior, a possibilidade é renascer da morte do pecado (falhas e desvios).
Todos os homens pecaram e estão destituÃdos da graça de Deus (têm defeitos), que projetou uma forma de resgatar os homens (corrigir seus erros e defeitos).
Para recuperar o domÃnio próprio (domÃnio sobre nossas vidas) temos que mudar de atitude. A entrega de nossa vontade na mão de Deus não é possÃvel se não sabemos o que vamos entregar.
Muitas vezes, as situações de descontrole a nÃvel emocional são as raÃzes que nos levaram ao copo.
Os nossos instintos foram criados para a nossa manutenção e defesa: os instintos de dignidade, acumulação, proteção, sexual, alimentar, aspirações e de descanso.
A satisfação de cada um desses instintos nos dá prazer. O prazer pelo mero prazer (mau uso dos instintos) é uma distorção e assim o instinto de dignidade pessoal ou respeito próprio vira orgulho, o de acumulação vira avareza, o sexual vira luxúria ou lascÃvia, o de proteção vira ódio ou ira, o de alimentar vira gula, o de aspirações vira inveja e o de descanso vira preguiça.
Para suportar a culpa e a vergonha, usa-se a bebida, que vai fazer progredir um instinto adquirido. O desenvolvimento desse instinto adquirido (alcoolismo) dificulta o percebimento do alcoólico, que continua agravando cada vez mais as suas distorções instintivas que o fazem beber, configurando assim um circulo vicioso.
Certamente devemos levar em consideração os fatores bioquÃmicos, psicológicos, sociais e filosóficos relevantes da estrutura da doença, mas todos eles se encaixam perfeitamente com a interpretação teológica e também são analisados no inventário.
Recomenda-se que o Quarto Passo seja feito por escrito, longe da presença de pessoas que possam inibir ou mudar o rumo das idéias.
A ausência de pessoas ligadas ao alcoólico o deixa livre para escrever seus segredos e analisá-los sem qualquer cerceamento. É preferÃvel que não saiba nem mesmo para quais pessoas irá ler o seu inventário (Quinto Passo). Um compromisso prévio de que não terá a atitude demagógica de mostrar posteriormente o seu inventário para os parentes e amigos também atenua os bloqueios inconscientes. A proposta de destruir as páginas escritas após o Quinto Passo também é de muita valia na atenuação daqueles bloqueios.
Seguir um roteiro com sugestões de tópicos a serem abordados no Quarto Passo pode facilitar a escrita do mesmo, mas acho melhor utilizar o roteiro somente depois que o inventário estiver pronto, apenas para acrescentar fatos ou sentimentos que possam ter sido esquecidos.
Fazer o inventário não significa apenas escrever superficialmente sobre si mes-mo. Isto tem que ser feito com minúcias e coragem, tem que ser sincero e destemido, a oportunidade tem que ser aproveitada. Uma boa auto-avaliação acarreta em maior facilidade para se determinar tudo o que será feito a curto, médio e longo prazo. Permite decidir quais são as prioridades, o que pode e deve ser modificado como e quando fazê-lo.
Parar de beber e ficar de frente para as ruÃnas que o álcool deixou pode ser deprimente e desaminador para o alcoólico que não vê soluções ou saÃdas para as conseqüências. O conhecimento detalhado da doença e de seus próprios limites, assim com saber lidar com as dificuldades iniciais da abstinência, ter planos bem estruturados para executar e ideais para serem alcançados, faz com que o alcoólico se sinta mais seguro e tenha participação determinante na sua recuperação, podendo enfrentar com satisfação todas as dificuldades que possam surgir.
Fonte: Revista Vivência nº 41 - Maio/Junho 199
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